terça-feira, 17 de março de 2009

Entrevista a Bento Amaral

Bento Amaral nascido a 29 de Março de 1969 no Porto

1.Gostaríamos de começar por perguntar qual é o tipo de deficiência que tem?

Sou tetraplégico porque parti a 5ª vértebra da coluna e com isso seccionei a medula.

2.E esse tipo de lesão, que particularidades é que tem?

Movimento mal os braços e só tenho movimentos das axilas para cima. Não mexo as mãos. Tenho alguma sensibilidade por a lesão ter sido incompleta mas não sinto por exemplo o calor e o frio abaixo do meu nível de movimento. Consigo usar as mãos porque consigo flectir os punhos e como tenho os dedos meio fechados consigo pegar em coisas como nos talheres para comer.

3.Que idade tinha?

Tinha 25 anos.

4.Como era o seu dia-a-dia e os projectos pessoais antes do acidente?

Estava a acabar o curso de Engenharia Alimentar, faltava-me uma disciplina. Era uma pessoa autónoma que me achava auto-suficiente. Estava a pensar ir trabalhar para a Austrália a fazer vinho. A família e os amigos não eram uma prisão para mim. Gostei sempre de fazer desporto. Costumava fazer vela, ski na neve e jogar futebol.

5.Como é que tudo isto aconteceu?

Tive o acidente em Agosto de 1994, na praia a fazer uma “carreirinha” numa onda (a apanhar boleia da onda). Apesar de ser um nadador experiente, bati com a cabeça no chão de fundo de areia e fiquei imediatamente paralisado, tinha acabado de partir a 5º vértebra da coluna vertebral e de seccionar a medula.

6.A que tipo de intervenções/tratamentos foi submetido? Durante quanto tempo?

Logo a seguir ao acidente, cerca de 3 horas depois, fui operado e colocaram-me uma peça de metal para segurar a vértebra que partiu no pescoço. A partir de aí comecei a fazer fisioterapia, nos primeiros seis meses nos quais estive no hospital fazia diariamente, depois passei a fazer 3 vezes por semana e agora “teoricamente” faço duas vezes por semana, mas falto muito mesmo muito. Na prática só faço umas 6 vezes por ano. Além disso é muito importante para os ossos e intestinos que me ponha de pé. Isso faço com alguma frequência numa cadeira eléctrica que tenho em casa que se levanta.

7.Imaginamos que não tenha sido fácil tomar consciência do que lhe estava a acontecer. Como foram os primeiros dias/semanas e como foi o processo a nível psicológico?

Nos primeiros dias optei por uma relativização do sofrimento. Tentei pensar que constantemente existem pessoas em pior situação do que nós e nunca nos revoltamos por causa disso, porque é que o iria fazer por o sofrimento ser meu? (Em 2008 li num livro chamado “Diário de Etty” algo que retrata bem isso: “o que é que acho que sou de “especial” ou estou acima dos outros para não poder sofrer tanto como os outros sofrem ou sofreram”. Bem pelo contrário, alguém que se sinta “especial” deve demonstrar que o é em situações críticas.

Se tivesse podido escolher uma vida, estou convencido que não teria sido esta que tinha escolhido. No entanto, julgo que apesar de tudo sou uma pessoa melhor do que se não tivesse passado por estes obstáculos. A conclusão que tiro é que algumas das coisas que não nos parecem boas, acabam por ser benéficas e ajudam-nos a crescer.

8.Quais as principais críticas a fazer aos profissionais de saúde que o assistiram ao longo de todo o processo?

Na praia, fui muito bem socorrido e levado para o hospital onde tive um óptimo acompanhamento médico. Foram um apoio essencial principalmente enquanto estive internado. Foram também uma ajuda preciosa para ensinar as tarefas que os meus familiares teriam que fazer no futuro para me ajudar. Por parte dos utentes é preciso perceber que os cuidadores de saúde são seres-humanos, podendo errar como tal, e que há dias melhores do que outros. Os cuidadores de saúde deverão esforçar-se para que os seus problemas (internos ou externos ao serviço) não interfiram na qualidade do trabalho que fazem principalmente porque estão a trabalhar com pessoas, que na sua maioria das vezes estão extremamente fragilizadas, física e psicologicamente.

9.Poderia descrever-nos os primeiros tempos depois de voltar a casa? Acabou de estudar ou procurou emprego de imediato?

Quando saí do hospital quis retribuir as visitas e a dedicação dos amigos. Voltei a fazer a vida social o mais “normal” possível (jantar, sair à noite, ir à praia, cinema …). Primeiro preocupei-me com a integração social, depois procurei trabalho (o que foi difícil). Procurei o equilíbrio na forma como preenchia o tempo. Tive de ter muita disciplina, acordava à mesma hora de quem ia trabalhar. Procurei a valorização pessoal. Ocupava-me a ler, a ver documentários na TV, a ver filmes… Afinal tinha aquilo que toda a gente se queixa de não ter: tempo para fazer o que queria (com a grande limitação de não poder sair de casa sozinho, só praticamente saía ao fim-de-semana e poucas noites)

10.Pode então descrever-nos como foi a sua carreira profissional após o acidente? Conseguiu emprego na sua área de formação?

O primeiro trabalho (1997), mais de três anos depois do acidente, foi para uma empresa que trabalhava com pessoas deficientes a partir de casa, a Telemanutenção. O trabalho era assistência técnica por telefones (helpdesk) da Microsoft. Mais tarde (1999) surgiu a oportunidade de trabalhar na minha área de formação (entretanto acabei o curso em 1995) e exactamente no que me especializei: vinhos. Comecei a dar aulas de provas de vinhos na Católica a uma pós-graduação em marketing de vinhos e comecei a trabalhar no IVDP (Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto – organismo que regula estas duas denominações de origem), como provador. Ainda mantenho estes dois trabalhos actualmente (apesar das aulas serem esporádicas).

11.Portanto, a nível profissional sente-se realizado…

Provar vinhos era o que eu sonhava e ainda por cima pagarem por fazer isso! Sinto-me mais realizado profissionalmente do que o esperava ser antes do acidente.

12.Sabemos que este ano foi representar Portugal nos Jogos Paraolímpicos. Ficámos curiosos... Quando e como é que voltou a praticar desporto?

Em 1998 uma fisioterapeuta do hospital da Prelada disse-me que Sierra Nevada tinha equipamento de ski adaptado para deficientes. Num ímpeto meio inconsciente fiz, com os meus irmãos e amigos, quase mil quilómetros numa sexta-feira depois de um dia de trabalho, para ir a Sierra Nevada e outros tantos no domingo seguinte para regressar. Experimentei e adorei a sensação de liberdade (mas sofri com o frio). Nos anos seguintes repeti a experiência, em 2000 fomos esquiar para La Plagne nos Alpes Franceses. Tinham havido um Jogos Olímpicos nessa estância pelo que estavam equipados com uma pista de medição de velocidade. Depois de muita insistência por parte do meu instrutor e de muita resistência de minha parte, desci com ele a pista de velocidade, tendo batido o recorde mundial de velocidade para deficientes (120,8 km/h). Antes do acidente fiz vela de competição durante 14 anos. Quando fiquei tetraplégico achei que nunca mais iria fazer. Em 2001, veio ao Porto um casal de australianos com barcos de vela adaptada (vela para deficientes). Em 2004 fui a um campeonato do mundo na Austrália onde fiquei em 2º lugar. Em 2005 (Itália) fui campeão do mundo no mesmo tipo de barco. Comecei a ter o sonho de querer participar nuns Jogos Paralímpicos (JP). Para isso tive que mudar de tipo de barco e procurar uma parceira (feminina). Encontrei a Luisa e agora velejamos num barco de dois. Em 2007 qualificamos Portugal pela primeira vez para estar presente nos Jogos na modalidade de vela. Em Março de 2008 ficamos em 3º no mundial em Singapura (faltavam alguns dos melhores). Em Setembro desse ano participamos nos Jogos Paralímpicos na China. Ficamos em 9º lugar mas foi o concretizar de um sonho e trouxemos recordações e amigos que nunca esqueceremos.

13.Também soubemos que se casou há pouco tempo... Como é que conheceu a Carmo?

No campeonato do mundo em Itália, uma amiga que tinha ido acompanhar-me, chamou-me a atenção pela alegria, disponibilidade para os outros. Passado pouco tempo começamos a namorar e casamos em Maio de 2007. Somos os dois muito felizes, apesar de não termos escolhido o caminho mais fácil e confortável. Temo-nos ajudado a crescer mutuamente e a tornarmo-nos melhores pessoas.

14.Actualmente, como é que é o seu dia-a-dia?

Acordo entre as 6h45 e as 7h15 Demoro entre 1h30 e 3h até sair de casa (arranjar-me, vestir-me, tomar banho, pequeno-almoço, etc). Durante o dia tenho um acompanhante/ motorista que me ajuda e leva para onde preciso de ir Preciso de ajuda para comer (por a comida no prato, água no copo, cortar carne, ter as coisas próximas para eu chegar). Preciso de ser vestido e despido. Preciso que seja outra pessoa a transferir-me de e para a cadeira a partir da cama ou do carro Como não me mexo, de noite de 2h em 2h, a pessoa que está no meu quarto tem que acordar para me virar de um lado para outro. Tenho dificuldades em escrever (escrevo lentamente tanto com caneta como no computador).

15.Hoje em dia é visivel, na nossa sociedade, há uma crescente preocupação em relação às acessibilidades... Pode-nos descrever algumas das maiores barreiras que encontra?

As minhas principais dificuldades de acesso são: escadas sem que exista uma alternativa através de rampas, elevadores ou plataformas elevatórias. Tamanho dos elevadores que a maior parte das vezes obrigam a que se desmonte a parte da frente da cadeira de rodas. Altura (baixa) e largura das mesas de restaurantes que por vezes me impedem que consiga por as pernas debaixo da mesa. Mais ocasionalmente, também me deparo com a dificuldade em encontrar um quarto de banho adaptado. São raros os hotéis, mesmo os mais modernos que tenham quartos de banho adaptados às minhas necessidades. Normalmente têm uma banheira com barras quando o que preciso é de um chão liso com um chuveiro.

16.O que é que pode ser feito para melhorar esta situação?

É preciso que as autarquias façam respeitar as obrigações legais de construção de edifícios, principalmente público, para que permitam a acessibilidade a todos os cidadãos. Os arquitectos e engenheiros devem ser formados e sensibilizados para estas questões. Os cidadãos de uma forma geral, devem ter civismo e não dificultar a mobilidade a quem tem dificuldades. Por exemplo, não estacionar o carro em lugares reservados para deficientes ou em cima de passeios.

17.Algum dia foi olhado como “diferente” num sentido prejurativo? Se sim, pode-nos descrever um acontecimento e o que isso provocou em si?

De início, por vezes, as pessoas nas lojas falavam com quem me acompanhava (familiares ou amigos) em vez de se dirigirem a mim. Isso deixava-me desconfortável por achar que a “imagem” que passava era que não conseguia ter um diálogo. Contudo ao longo do tempo, fui-me apercebendo que isso também dependia muito da minha atitude. As pessoas dirigiam-se menos a mim quando eu estava meio escondido atrás de quem me acompanhava e isso também acanhava as pessoas a estabelecer diálogo.

18.Qual a sua opinião em relação às “ajudas” disponibilizadas às pessoas com deficiências?

O ideal seria que houvesse mais apoio, por exemplo, em países como a Suécia e a Austrália, o estado paga a uma pessoa para tomar conta das pessoas que têm o meu grau de deficiência. Cá dão um subsídio baixo e que é retirado quando a pessoa começa a trabalhar. A cidade começa a estar melhor preparada para os deficientes físicos. Houve uma grande melhoria nos últimos 15 anos (transportes públicos, elevadores, atitude das pessoas em relação aos deficientes), contudo ainda há coisas a melhorar.

19.Na sua opinião, como e quando é que se deve ajudar um deficiente?

Deve-se ajudar nas tarefas que ele não consiga fazer sozinho ou que seja razoável ajudar para ser mais rápido. Caso contrário pode ser proteccionismo (que o infantiliza) ou o diminui (por passar-lhe a impressão que ele é um incapaz e consegue fazer menos do que consegue). Deve haver abertura para quando o deficiente precisar de ajuda se sentir à vontade para a pedir e não se sinta constrangido por o fazer por achar que está a incomodar o outro. No meu caso o facto de estar dependente de outras pessoas fez-me dar mais importância às relações pessoais, à família e aos amigos. Aproximou-me dos outros. Sei ouvir e compreender melhor as pessoas diferentes de mim. Ajudou a aperceber-me que sozinhos não valemos nada (e não é por ser deficiente, isto é verdade para todos).

20.E quanto a uma cura para a tetraplegia? Acredita que a medicina está a evoluir nesse sentido, ou não?

Acredito que mais cedo ou mais tarde isso vai acontecer mas vai demorar ainda algum tempo, penso que mais de 10 anos. Quando tive o acidente em 1994 diziam que se deveria encontrar a cura em 10 anos, entretanto já se passaram 15 e nada. Surgiram novas vias para encontrar a cura. Por isso tento, e sou, feliz mesmo com as limitações físicas que tenho. Sou feliz com o que está ao meu alcance e não procuro a felicidade em coisas que não tenho (ou possa ter).

21.Para finalizar: Acidentes como o seu, infelizmente, há muitos. Tendo em conta tudo porque passou, o que diria a um jovem numa situação idêntica à sua?

Que é normal que se sintam desanimados e achar que a vida deixou de ter interesse mas existe um sem número de actividades profissionais e desportivas que poderão fazer. É possível que não sejam exactamente as que tenham previsto antes mas que os poderão realizar tanto como essas. Para isso, é preciso persistência, confiança, flexibilidade para se aperceber de oportunidades que não parecem. Uma última palavra para os familiares e amigos de deficientes – o apoio e acompanhamento são essenciais para que se consiga superar as dificuldades.

Muitos parabéns por tudo o que tem alcançado e obrigada por nos dar a oportunidade de conhecer a sua história. Foi para nós uma experiência extremamente enriquecedora.

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